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Vale a pena salvar Gotham?

(6/05)

O verão chegou. As chocantes ajajas (tempestades de areia) de Bagdá cobriram tudo com uma pálida poeira amarela. Enquanto isso, no quartel general imperial, o efeito do João Pestana da lista dos filmes da temporada convence os americanos a voltarem a dormir, a extensão e consciência das atenções se aliviaram na forma de complacência, em contraposição às sufocantes tempestades de areia sumérias. Recoste-se e coma a sua pipoca na bolha artificial de felicidade refrigerada e acionada por petróleo, enquanto a bolha lá fora mostra sinais de explosão. O lançamento de Batman Begins está nessa atmosfera, e embora nenhuma distopia de histórias em quadrinhos possa capturar o horrível espetáculo do declínio da América, a mórbida descrição de Christopher Nolan é mais do que mera fantasia.

Nenhum observador inteligente terá deixado de perceber as implicações do destino do cartel dominante de Gotham. O poder do crime, mesmo no seu auge, é surpreendentemente vulnerável; pelo menos no Movie Magic. Com as mãos em todas as alavancas do poder, a elite da máfia de Gotham corrompeu completamente todos os níveis da ordem social e os preencheu com charlatões e sanguinários que reagem somente ao dinheiro, ao poder e à corrupção irrestrita dos dois, tanto que cidadãos comuns podem fazer pouco mais do que se esconderem de medo. Cabe a um super-herói, a um promotor e a um único policial que não se corrompeu salvar a degenerada Gotham dela mesma, contra todas as dificuldades.

Paralelos com a América do Bush são inconfundíveis. Com o controle dos três órgãos do governo, uma imprensa complacente e bajuladora e com americanos assustados, burros ou abstraídos demais para pensarem, o cartel do Bush pareceria equilibrado para construir o seu castelo de cartas tão alto como os céus. Pior, assessores de imprensa do partido da "oposição" chegam ao circuito para garantir ao povo cansado de Gotham que eles teriam feito tudo de forma diferente: Bush deveria ter ouvido os generais que lhe disseram que ele precisava de mais tropas. Entendi: eu era contra a guerra, mas a guerra deveria ter sido muito maior. Hein? Gary Oldman é o único cidadão comum que não se corrompeu? Quem pode digerir essa droga?

Mesmo tudo isso não é fácil para os assassinos que assombram as paredes do poder de Gotham, falaremos disso depois. Um novo antagonista proporciona uma virada ainda mais interessante. A Liga das Sombras decidiu que Gotham não deve ser salva e deve ser destruída. O caos resultante destruirá a fascinação de Gotham de uma vez por todas e permitirá que algo novo e mais puro se desenvolva nesse lugar.

O extraordinário insight dessa ardilosa analogia é que o argumento de que se vale a pena salvar Gotham ou não cabe apenas ao Batman e ao seu castigo transformado em mentor na forma de Liam Neeson. À medida que Gotham passa pela sua opressão diária, com o seu núcleo podre, ninguém na bolha percebe que o debate ultrapassou as minúcias cansadas do que se passa por vida no Ventre da Besta.

De forma semelhante, os americanos ainda se permitem ser enganados pelo espetáculo sensacionalista das "notícias" na TV que exploram os complexos detalhes da vida privada de Michael Jackson e ignoram completamente o seu presidente idiota e mentiroso e os seus inacabáveis crimes de regente não eleito, que de alguma forma agora mantém o poder do estado do seu lado. Os âncoras dos noticiários falam detalhadamente sobre a propriedade, ou impropriedade, do comentário de Dick Durbin ao comparar o campo de concentração de Guantanamo àqueles dos nazistas. Não importa o fato de que as analogias históricas sempre estão erradas por definição; as únicas analogias "precisas" são as matemáticas: 1 está para 2 como 2 está para 4, e por aí em diante. O pecado verdadeiro de Durbin foi elucidar o mundo fora da bolha, onde os americanos nem sempre são vistos como os mocinhos.

Os americanos tratam da sua felicidade, esquecidos do ódio que acontece quando sobem nos quatro ventos e atravessam os setes mares. Os estrangeiros, essas espécies notáveis, mas ainda humana de não-americanos, não compartilham das mesmas ilusões, e algum dia, teremos que acordar para a realidade de que o debate há muito tempo ultrapassou o nosso pequeno mundo de noivas em fuga e de guerras higienizadas e sem sangue. Sem um filtro de aprovação, todos esses horrores são vistos sob uma luz diferente, a luz do dia, da luz da verdade, uma luz diferente da sancionada pelos criadores de mitos da América. 
Guantanamo, a destruição de Fallujah, a tortura em Abu Ghraib e Baghram (sim, tortura e não excesso, como os relatos da imprensa rotularam usando eufemismo, como se os torturadores fossem pais ruins que precisassem ser repreendidos pelos serviços de proteção à criança), todas essas imagens obscuras para os que estão na bolha desenvolveram claramente uma imagem coesiva para quem está por todo o mundo olhando para dentro da bolha; a imagem de uma sociedade violenta, valentona e fora do controle com uma quadrilha de lunáticos perigosos enlouquecidos no poder na direção da Nave do Estado.

Como eu sempre tive o privilégio de ter o meu trabalho traduzido, eu tenho contatos em dezenas de países em todo o mundo, que me lembram da verdade de que a propensão americana para a auto-ilusão está beirando os limites. Essa, como todas as bolhas, é tão frágil como é transparente. A minha esposa e eu assistimos com assombro nossos amigos rechaçados, um a um, abandonando a sua América adotada no despertar de um presságio tão horrível. A eleição pareceu ser a gota d'água, quando até os Yankeephiles, desesperados para perdoar as pessoas enquanto condenam o seu governo, finalmente desistiram. "Vocês estão na nossa cidade", parecem dizer - e quem pode culpá-los? - enquanto indistintamente aparece a pergunta verdadeiramente real, incompreensível para a maioria dos americanos, se Gotham deveria ser salva ou não.

Mesmo assim, como em Gotham, nem tudo corre tranqüilamente para Bush, para o seu Rasputin Karl Rove e para a sua irmandade de mentirosos, ladrões, trapaceiros e corruptos. Existe a sensação de que há algo errado, profundamente errado, no mundo de denso roteiro da bolha do Bush, uma sensação profunda de que "isso" chegou ao fim; seja lá que "isso" for. Para os retidos que ainda duvidam disso, um pânico palpável recentemente varreu o país em segredo de costa à costa e abalou o espectro que varia de libertários a comunistas, quando a Suprema Corte efetivamente aboliu a propriedade privada no coração do capitalismo. As prefeituras agora podem se apoderar de propriedades privadas para transformá-las em desenvolvimentos privados. O caminho agora está calçado (e digo isso literalmente) para a bem-aventurada monocultura do inferno de paisagem com pesticidas, uma pista de rodovia de Home Depot depois de WalMart depois de outra, à medida que cidadãos irritantes são arrasados (sim, digo literalmente também).

Não é de se espantar que uma pesquisa CNN/Gallup conclui que os americanos "geralmente estão com medo". Pobre Jimmy Carter: se ao menos ele tivesse usado outra palavra em vez da esgotante palavra francesa "malaise", as pessoas o teriam ouvido naquela época. Apesar da sacola de Rove com truques maléficos, as pessoas permanecem duvidosas de que o Seguro Social deve funcionar para enriquecer Wall Street. A classe de trabalhadores da América e a maioria jovem provam ser muito mais espertas do que os planejadores do Pentágono e dos seus recrutas capangas com quem contavam. Bolton foi insultado como a caricatura que ele é, enquanto a força da permanente queda dos números das pesquisas bate na cara do Bush. Isso tudo já não basta? O ultraje algum dia estourará, e os cidadãos de Gotham enfrentarão a emergência? Ou não vale a pena salvar Gotham? Sussuros de impeachment crescem à medida que os Downing Street Memos (minutos de uma reunião secreta entre o governo do Reino Unido e a inteligência americana para discutir o estabelecimento da guerra) vazam pelos muros a prova de fogo do esquecimento americano. Claro que um impeachment raramente é bastante para criminosos de guerra dessa magnitude, mas é um ponto de partida necessário para o ajuste de contas que deve acontecer se a razão prevalecer. Exposições como o cérebro do Bush andam em circulação, e a perversa e desonesta mão de Rove nas alvancas do poder começam timidamente a vir a luz. Como uma espécie de personagem convidado descartável do desenho animado American Dad, Rove representa uma espécie de padre maligno que tem uma presença real que congela o aquário, que queima na igreja e se transforma em um bando de morcegos quando seu "trabalho está feito". Desenhos animados podem não influenciar o poder do estado, mas, caramba, o que é engraçado é engraçado.

Fora da bolha, pontos brilhantes são mais fácies de serem encontrados. Felizmente, a América Latina se encontra em uma rebelião madura como em nenhuma outra época em 25 anos. A revolução venezuelana de Hugo Chavez se baseia nas reservas de petróleo recentemente descobertas, garantindo o sonho do uso da vasta riqueza do petróleo do país para beneficiar os pobres, ou uma invasão americana, mas não os dois. Conseqüentemente, o boicote da Citgo para encorajar o apoio ao programa de Chavez é uma campanha pela Internet interessante e promissora. Os eleitores europeus não se impressionaram com a perspectiva de globalização da forma da NAFTA e rejeitaram o programa neoliberal em votações decisivas na França e Holanda.

Impedindo toda a esperança, claro, está fato de que os subordinados a Bush não são suscetíveis ao auto-engano. O libanês da loja da esquina diz que mesmo Bush não é suficientemente estúpido para começar outra guerra com o Irã. Mas estupidez, eu lembro, não tem nada haver com isso. Os acessores de Bush tiveram o bom senso de desenvolver a sua base entre os fanáticos fundamentalistas dos Fins-dos-Dias. Tão impenetráveis à razão ou às críticas quanto o seu Imprudente Líder Destemido, esses perigosos malucos estão tão convencidos que fazem o Trabalho de Deus que pensam que podem fazê-lo melhor do que Ele. Esses malucos na verdade buscam um novilho bíblico para ser sacrificado no monte do templo. Pobres israelitas que tiram sortes com esses fascista cristãos armagedonistas. A única razão para Sião existir para esses que apressam o Arrebatamento é que ela possa ser consumada em uma bola de fogo enquanto eles, os Escolhidos, são chamados ao encontro do seu Criador. Com amigos como esses, quem precisa de inimigos? Nessa visão, é mais compreensível que eles estejam prontos a jogar o cuidado para o alto enquanto nós sofremos no fogo eterno.

Mas a razão real para a Grande Pergunta estar no ar é a mesma razão para a analogia nazista de Durbin fracassar. Todas as insolências devem ser punidas com uma queda. Roma foi saqueada; os Nazistas foram derrotados, militar e terminantemente, e forçados à mira de armas pelas forças de ocupação a desenvolveram uma "nova" sociedade, uma sociedade sem exército ou ambições imperialistas. O orgulho ferido é justamente o tipo de grito de guerra que a América precisa para corrigir a sua rota, embora a insanidade da panelinha do poder ainda possa ser bastante para saciar um massacre suficiente de onde se possa tirar uma lição. Vitórias quase contínuas são perigosas e não produzem lições que permaneçam. A reconstrução abortada nunca pôde corrigir a escravatura, consentindo, em vez disso, com cem anos de linchamentos, a Klan e a maior onda de terrorismo doméstico da história dos EUA. Então, o que vai ser? Gotham pode salvar a si mesma? Apenas o tempo dirá se os Americanos acordarão e pregarão a salvação de Batman ou se enfrentarão a Liga das Sombras e Liam Neeson.

© Daniel Patrick Welch 2003. Concedido permissão para reprodução.
Traduzido por Emilia Carneiro

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Daniel P. Welch mora e escreve em Salem, Massachusetts, EUA, com sua esposa, Julia Nambalirwa-Lugudde. Juntos, eles operam The Greenhouse School. Escritor, cantor, lingüista e ativista, ele apareceu na rádio [entrevista disponível aqui] e também pode estar disponível para futuras entrevistas. Artigos passados e traduções estão disponíveis em danielpwelch.com. Links ao site são bem-vindos